Há uma controvérsia doutrinária e jurisprudencial em torno do contraditório na emendatio libelli, conforme previsto no artigo 383 do Código de Processo Penal (CPP).
A emendatio libelli modifica a tipificação penal durante o julgamento levantando questões quanto à garantia constitucional do contraditório.
O problema reside na possibilidade de alteração da acusação sem oportunidade adequada da defesa exercer o contraditório, o que pode acarretar sérias consequências para o réu, incluindo aumento da pena.
O contraditório é de importância indiscutível para a realização do devido processo legal. Tal princípio engloba desde a possibilidade de o acusado manifestar-se sobre as acusações que lhe são imputadas até o direito à produção de provas e à assistência jurídica adequada, garantindo que a decisão final seja baseada em elementos sólidos e justos.
O próprio sistema processual acusatório é marcado pelo contraditório uma vez que se compõe da separação de agentes, titulares das funções essenciais do processo: iudicis, actoris et rei.
O juiz, no sistema acusatório, é um garantidor dos direitos fundamentais consagrados pela Constituição; no inquisitivo, é parte, investigador, produz a prova, acusa e julga. Esse sistema não admite o contraditório, uma vez que não há contraposição entre acusação e defesa.
Além disso, o acusado é mero objeto do processo. Em um Estado democrático de direito, a legitimidade da atuação do juiz tem, também, uma dimensão política de limite do poder estatal frente ao cidadão.
A teoria processualista de Elio Fazzalari [1] destaca o contraditório como elemento central do conceito de processo diferenciando do conceito de procedimento. É a partir dessa teoria que se alcança a compreensão garantista do porquê se dá importância à fala de todos os atores processuais.
Aroldo Plínio Gonçalves [2] define o contraditório como “garantia de participação, em simétrica paridade, das partes”. A garantia é da possibilidade de participar, não é a efetiva participação.
A base do contraditório se suplanta, assim, na isonomia. A esse método fundado em um conflito, disciplinado e ritualizado, entre as partes contrapostas, Ferrajoli [3] defende que a contradição sustenta todo o sistema garantista do processo.
Nesse contexto, pode ser considerada uma violação do princípio a aplicação do instituto da emendatio libelli? Esse instituto permite a alteração da descrição do crime durante o processo penal sem a prévia manifestação da defesa. Altera-se a capitulação sem uma discussão aprofundada. Até que ponto a doutrina e a jurisprudência compreendem a necessidade do respeito ao contraditório na emendatio?
A emendatio libelli é um termo jurídico que se refere à correção da acusação em um processo criminal durante seu julgamento. A emendatio libelli é um reconhecimento de que o acusador apresenta uma classificação incorreta do crime [4].
Os fatos são mantidos, mas o tipo penal é modificado. Essa correção é, assim, um ajuste do conteúdo da acusação à tipificação penal. A previsão da emendatio está no artigo 383, do CPP.
Julio Fabbrini Mirabete [5] explica que o acusado se defende do fato criminoso que lhe é imputado e não dos artigos da lei que o definem. Fernando da Costa Tourinho Filho [6] usa os aforismas narra mihi factum dabo tibi jus (narra-me o fato e te darei o direito) para ilustrar a matéria. Sérgio Seiji Shimura [7] relaciona a matéria ao princípio da correlação entre a acusação e a sentença no processo penal onde a sentença deve estar estritamente relacionada aos fatos descritos na acusação e não apenas na capitulação.
Eugênio Pacelli [8] conclui que os órgãos acusatórios não têm o poder ou a prerrogativa de escolher a definição jurídica do fato. Essa é uma função atribuída constitucionalmente ao Judiciário. Além disso, essa hipótese representaria um fracionamento temporal da sentença, uma vez que anteciparia, em grande medida, o convencimento judicial.
O STF [9] entende que é o descrito, e não como foi capitulado pelo promotor, o que importa.
No STJ [10], permite-se ao juiz fazer nova adequação do tipo, desde que não mude os fatos. Por exemplo, a acusação na modalidade tentada, ao invés de consumada, pode ser corrigida na sentença [11]. Não há nulidade [12] mesmo se a pena for aumentada[13].
Parte da doutrina, assim, compartilha do posicionamento de que a emendatio libelli pode ser aplicada sem a manifestação da defesa. Entende o procedimento como mera formalidade incapaz de trazer prejuízo ao acusado.
A jurisprudência não destoa compreendendo a emendatio como uma mera adequação entre a descrição jurídica do fato e a prova dos autos. Essa corrente concorda que, não havendo modificação dos fatos, é desnecessário abrir o contraditório.
A visão dessa corrente compromete a segurança jurídica dentro do processo penal porque amplia a imprevisibilidade da decisão. É pressuposto do contraditório e da ampla defesa saber os fatos e a acusação formal.
Mudar a tipificação jurídica do crime num último momento processual — via de regra — surpreende a defesa. Observa-se que a corrente parte de um pressuposto equivocado de que há uma distância entre os fatos e a capitulação jurídica.
Essa visão é artificial e não corresponde a uma análise moderna e democrática do processo. Ademais, coloca o juiz como mero aplicador da lei. De toda forma, se há a possibilidade de se restringir a liberdade do acusado, sempre se deve proporcionar ao réu oportunidade de contribuir com o resultado do processo.
Diogo Rudge Malan [14] defende que para que seja acolhida a emendatio libelli, é necessário o respeito aos princípios do contraditório, o que pressupõe a prévia manifestação da defesa. Guilherme de Souza Nucci [15] e Fernando Capez [16] compartilham da mesma opinião.
Guilherme Madeira Dezem [17] releva que há mais garantia no CPC do que no CPP porque se proíbe a chamada decisão surpresa, referindo-se aos artigos 9º e 10º do CPC. Afirma que a emendatio libelli viola a CADH, que garante ao acusado o direito à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada, a fim de conceder-lhe o tempo e os meios necessários para sua defesa.
Antonio Magalhães Gomes Filho, Alberto Zacharias Toron e Gustavo Henrique Badaró [18] apontam que uma visão que privilegia a Carta concede manifestação bilateral às partes antes da emenda. Badaró [19] exige contraditório efetivo.
Renato Brasileiro [20] observa que o princípio do contraditório não se limita apenas às questões fáticas, mas também às questões de direito debatidas no processo. Aury Lopes Jr. [21] critica o entendimento predominante na jurisprudência argumentando que a garantia do contraditório pressupõe a vedação da surpresa.
Na jurisprudência, excepcionalmente, temos decisões que anulam a emendatio.
O TJ-MG anulou processo onde a emendatio libelli ocorreu no recebimento da denúncia [22]. O TJ-SC entendeu que a emendatio libelli não seria possível, pois a peça acusatória não narrava o elemento subjetivo do tipo penal diverso do dolo [23].
Defendendo diretamente o contraditório na emendatio, encontramos três decisões.
No primeiro caso, o STF decidiu por unanimidade que um deputado federal acusado de crime eleitoral deveria ser interrogado novamente e que sua defesa também deveria ser ouvida sobre a emendatio que alterou a capitulação dos artigos 348 e 353 para o artigo 350 do Código Eleitoral [24].
No caso dois, do TJ-RS, um adolescente foi representado pela prática de ato infracional equiparado a porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (artigo 16, § único, inciso IV, da Lei 10.826/03), mas foi condenado pela conduta tipificada no artigo 14, caput, da mesma lei. O apelo foi provido por maioria [25].
No terceiro caso, o apelante foi denunciado pelo crime de corrupção passiva (artigo 308, CPM), e o juízo condenou pelo crime de concussão (artigo 305, CPM). A lei processual penal militar, conforme estabelece o artigo 437, ‘a’, CPPM, exige o contraditório na emendatio [26].
Dessa análise da doutrina e jurisprudência, observa-se uma corrente que faz literal leitura do artigo 383, CPP e outra que conjuga a interpretação com a Carta. Se descortina na doutrina mais atual a influência do CPC e do CPPM que exigem o contraditório em harmonia com a Carta.
É desconcertante observar, assim, em uma interpretação sistemática, que o processo penal seria uma exceção ao contraditório na matéria. É inevitável a comparação dos dispositivos porque relacionados a um mesmo objeto. Da análise isolada e gramatical, não se pode extrair a verdadeira dimensão de um problema. Carlos Maximiliano [27] pontua:
“A verdade inteira resulta do contexto, e não de uma parte truncada, quiçá defeituosa, mal redigida; examine-se a norma na íntegra, e mais ainda: o Direito todo, referente ao assunto. Além de comparar o dispositivo com outros afins, que formam o mesmo instituto jurídico, e com os referentes a institutos análogos; força é, também, afinal pôr tudo em relação com os princípios gerais, o conjunto do sistema em vigor.”
Essa chamada interpretação sistemática permite traçar interpretação comparando o contraditório no processo penal, no CPC e no CPPM. O direito é único, sendo sua separação mera opção de facilitar a sistematização.
O presente estudo demonstrou que é a partir dos princípios jurídicos que se deve condicionar e restringir os dispositivos; há uma distância do pensamento entre a jurisprudência e a doutrina dominantes sobre o tema. Nos processos civil e militar, há previsão do contraditório de maneira mais eficaz que no processo penal.
O instituto da emendatio pode trazer prejuízos à defesa no momento em que os fatos não foram objeto direto do contraditório e a parcialidade do juízo foi comprometida uma vez que demonstra de antemão uma propensão condenatória.
Duas conclusões desses elementos: há necessidade de se adequar a emendatio libelli ao contraditório e não o contrário. Por outra, entendemos possível e necessário se interpretar sistematicamente o instituto, com olhos às regras do processo militar e civil, a fim de vencer os obstáculos da aplicação do princípio constitucional vergastado.
Quando o CPC trata de direitos disponíveis, há a vedação à decisão sem o contraditório, mas quando o CPP trata de direitos indisponíveis — como a liberdade —, é negado. A questão, pois, não é discutir os termos do artigo da lei, mas, sim, observar qual a melhor solução jurídica numa interpretação coadunada com as leis mais atuais (CF e CPC).
Quando se trata de limitar ou retirar a liberdade de alguém, numa sociedade civilizada, deve-se permitir todos os meios, recursos e oportunidades de defesa para contradizer toda e qualquer acusação. Todo prejuízo no procedimento penal será sempre menor do que a liberdade de um sentenciado.
Wilson Tavares de Lima - OAB/MS 8290
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