Originalmente previsto na 6ª emenda à Constituição dos Estados Unidos e há muito adotado no sistema da common law, tal direito encontra, atualmente, assento em normas de natureza convencional e constitucional, compondo o rol de requisitos necessários à produção da prova testemunhal válida.
A Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH) prevê em seu artigo 8º, n. 2, “f” que o acusado tem o direito de “inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos”.
Em norma semelhante, o artigo 14, nº 3, “e”. do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Na seara constitucional, pode-se afirmar que o direito ao confronto se respalda no artigo 5º, §2º e no artigo 5º, inciso LV (ampla defesa), ambos da Constituição, bem como no direito à prova no Processo Penal (direito de defender-se provando).
Daí correta a afirmação de que a participação efetiva do acusado na produção da prova através do direito ao confronto permitirá que co-determine ou influa na decisão final do processo [1], isto é, participe da construção do provimento.
Aliás, esse direito fundamental visa assegurar a presença das testemunhas/vítimas em audiência ou julgamento para que o acusado possa confrontá-las democraticamente, de forma que, se ausentes, suas declarações anteriores eventualmente prestadas em sede policial ou ministerial devem ser desconsideras para fins de formação da convicção do juiz [2].
O direito ao confronto implica na garantia de diversos outros direitos, abrangidos pelo que se denomina de Paradigma do Direito ao Confronto [3]:
(i) produção da prova testemunhal em audiência pública;
(ii) presenciar a produção da prova testemunhal (“right to be present”);
(iii) produção da prova testemunhal na presença do julgador do mérito da causa;
(iv) determinação às testemunhas do compromisso de dizer a verdade, salvo informantes;
(v) informação completa e verdadeira identidade das testemunhas;
(vi) inquirição das fontes de prova testemunhal desfavoráveis, no momento de sua produção; [4]
(vii) comunicação, reservada, direta, livre e ininterruptamente, com seu defensor durante a produção da prova oral; [5] e,
(viii) direito de influir na produção da prova e na decisão final [6].
A partir desse paradigma, há uma evolução da visão tradicional do direito ao confronto que o interpretava apenas como uma forma de assegurar o oponente a realizar o exame cruzado (“cross-examination”) e permitir ao julgador observar o comportamento da testemunha enquanto depõe, o que ensejaria certo efeito moral ou de controle/pressão sobre a testemunha [7].
Entretanto, o direito ao confronto não se confunde com o “cross-examination”, sendo este um método (técnica) processual de inquirição das testemunhas característico do sistema anglo-americano e que pode ser utilizado também pelo órgão acusatório, enquanto o direito ao confronto é um direito fundamental apenas do acusado (defesa). Ainda que este possa ser materializado pela inquirição cruzada, não se esgota nele, em face das salvaguardas subjacentes.
Deve-se analisar o direito ao confronto sob dois vieses. Primeiro sob o aspecto epistemológico, este direito visa assegurar a melhor prova a ser utilizada no processo penal, funcionando como ferramenta de averiguação, controle e confiabilidade da fonte humana de prova, com o escopo de mitigar erros judiciais.
Segundo, sob o aspecto processual, orienta-se à restrição do uso abusivo pelos órgãos persecutórios de declarações prestadas na fase inquisitorial em substituição à produção da prova em juízo, criando, assim, um ônus de produção (“confrontation´s burden of production“) para o órgão acusatório quanto à produção em contraditório participativo da prova testemunhal.
Desta forma, busca priorizar política processual que assegure garantias dialético-argumentativos na produção das provas decorrentes de fonte pessoal.
Direito ao confronto x contraditório
Apesar de terem alguns aspectos semelhantes, a doutrina aponta diferenças entre o direito ao confronto e o contraditório. Enquanto o contraditório pode ser exercido por todas as partes processuais, o direito ao confronto é de titularidade exclusiva do acusado, diante da simples literalidade das normas convencionais [8] e da função de garantia inerente ao devido processo legal.
Note-se que o direito ao confronto tem sua incidência sobre atos processuais de produção de prova pessoal (oral), sendo que o contraditório, além de incidir na produção de prova oral, também se aplica aos demais atos da instrução (p.ex. direito de informação, produção de prova documental e pericial) ou a outras fases processuais (alegações finais, p. ex.). [9]
O direito ao confronto se aproxima de um contraditório “para” o elemento de prova (“contraddittorio per l’elemento di prova” [10]), uma vez que este exige a efetiva participação do acusado na produção probatória, afastando-se, por sua vez, de um contraditório “sobrei” o elemento de prova (“contraddittorio sull’elemento di prova” [11]), tendo em vista que, neste caso, apenas será garantido ao acusado se manifestar posteriormente sobre o elemento de prova já produzido, inviabilizando de exercer o confronto deste elemento no momento da produção. Em consequência, trata-se de requisito de validade e não de critério de valoração (eficácia).
Ainda que se saiba da existência de entendimento mais moderno sobre um contraditório mais efetivo em que se exige um alto grau de contraditoriedade dos elementos de prova, fato é que persevera forte visão tradicional que se satisfaz com a possibilidade de discutir (mera audição/manifestação da defesa sobre o elemento já produzido), isto é, mera informação e contraditório indireto do elemento de prova já produzido antes de uma decisão judicial. Logo, conclui-se que é imprescindível que se assegure o exercício do direito ao confronto na produção probatória penal.
No ordenamento jurídico brasileiro é certo que o procedimento previsto para produção da prova oral respeita, de forma geral, o paradigma do direito ao confronto, a saber:
(i) oralidade (artigo 204);
(ii) presença do acusado (artigo 217);
(iii) presença do julgador do mérito da causa (artigo 212);
(iv) imposição do dever de dizer a verdade às testemunhas (artigo 203);
(v) conhecimento da identidade das testemunhas pelo acusado (artigo 203 e 205);
(vi) inquirição direta das testemunhas pelo defensor do acusado no momento da produção da prova (artigo 212).
Ocorre que, apesar de tais normas, a legislação processual penal permite a admissão e valoração de elementos produzidos anteriormente ao processo.
Essa é a crítica que deve ser feita ao artigo 155 do CPP que possibilita a condenação com base em elementos colhidos no inquérito ou em outros procedimentos investigativos não-judiciais (inclusive de forma preponderante), ensejando uma grave violação ao direito ao confronto que é restringido desproporcionalmente [12].
Entretanto, como ressalta Aury Lopes Jr, além da herança inquisitória, confundem-se os “atos de investigação” com “atos de prova” [13].
É sabido que a regra é a produção da prova de forma dialética com a participação do acusado, mas não se desconhece que, para alguns elementos de prova isto não será possível, como ocorre com provas documentais que existem anteriormente ao processo (por ex.: recibos, contratos), garantindo-se ao acusado exercer o contraditório diferido.
O problema existe no tocante às provas de fonte pessoal, cuja produção deve contar com a participação efetiva do acusado, a fim de que se respeite o paradigma do direito ao confronto. Caso contrário, não se pode classificar o processo como justo ou democrático, na medida em que o acusado ficará impedido de influir no julgamento, no acertamento do caso e/ou na convicção do julgador quanto ao suporte fático reconhecido na decisão final do caso que terá efeitos sobre si.
Uma questão que merece destaque é sobre a utilização dos elementos anteriores ao processo quando a prova é renovada em juízo, ou seja, a testemunha prestou declarações em sede investigativa e compareceu posteriormente em juízo.
Indaga-se: seria possível a utilização pelo julgador de declarações anteriores ao processo de testemunhas quando estas comparecem em juízo para dar seu depoimento? De que forma podem ser utilizadas estas declarações anteriores: apenas para aferir a credibilidade das testemunhas ou também para fundamentar a decisão condenatória?
Sob a luz do paradigma do direito ao confronto, defendemos que nenhuma declaração anterior ao processo de testemunha possa ser utilizada pelo julgador quando da decisão penal porque a prova testemunhal é a produzida sob o contraditório (via produção antecipada ou audiência de instrução e julgamento.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) já aceitou o uso pelo julgador de elementos colhidos na fase de inquérito, desde que a sentença condenatória não seja baseada de forma exclusiva nestes elementos [14], reduzindo a dimensão da garantia do direito ao confronto de modo ilegítimo.
Logo, em geral, prevalece o uso em desconformidade, na linha do STF, com a utilização/valoração de tais elementos pelo julgador não apenas para aferir a credibilidade, mas também para permitir a formação da convicção do juiz, por meio de uma interpretação literal do artigo 155 do CPP.
Em Portugal, por exemplo, há controvérsia na doutrina, havendo quem entenda que o juiz poderá valorar as declarações anteriores na formação da sua convicção, eis que a testemunha estará presente na audiência e poderá esclarecer qualquer fato dito anteriormente.
Por outro lado, há quem adote uma interpretação mais restritiva no sentido de que os elementos informativos anteriores ao processo (decorrente de fonte pessoal) só serão utilizados para enfraquecer ou fortalecer a prova produzida em audiência, o que permitiria ao juiz dar maior ou menor valor probatório à prova, sendo vedada a utilização de tais elementos para formação da convicção do juiz.
Em nosso entender, quando há o comparecimento em juízo, a utilização de declarações anteriores dadas em sede investigativa não esvazia desproporcionalmente o direito ao confronto, porque o acusado terá a possibilidade, em audiência e diante da testemunha [15] de confrontá-la e participar da produção da prova.
Dito de outra forma, as declarações anteriores podem orientar as partes quando do questionamento, sem que possam substituir o conteúdo produzido em observância do direito ao confronto.
Considerações finais
Ainda há um caminho pela frente para consagrar o direito fundamental ao confronto que, além de assegurar uma melhor qualidade da prova a ser utilizada no procedimento criminal (viés epistemológico), cria um ônus de produção aos órgãos acusatórios de produzir a testemunha na audiência de instrução e julgamento, ou no julgamento no procedimento do Júri, o que permitirá que o acusado fique diante da testemunha e a confronte perante o julgador da causa (viés processual).
Ao acusado deve-se conceder todos os meios e formas para que exerça sua ampla e efetiva defesa criminal, enfrentando a prova colocada em seu desfavor e garantindo sua participação num processo justo, vedada a testemunha sigilosa, sem rosto, nem nome, na linha do modelo inquisitório, descolado do devido processo legal. Aceitam-se mecanismos de proteção à testemunha que, todavia, não significam a possibilidade de alguém ser condenado por fonte de prova anônima.
Assim, na produção da prova penal (oral), a interpretação que deve prevalecer é aquela que veda a utilização pelo julgador de elementos produzidos anteriores ao processo (fase extrajudicial) porque em desconformidade com o requisito de validade. Logo, se a fonte da prova deixa de comparecer, a prova é inexistente. Do contrário, violam-se as normas constitucionais e dos tratados internacionais de Direitos Humanos.
Em resumo, o direito ao confronto é requisito da produção válida da prova testemunhal, isto é, se não for produzida por meio de produção antecipada de provas ou na audiência de instrução e julgamento, do ponto de vista do devido processo legal, não pode ser qualificada como prova penal para fins de condenação.
Wilson Tavares de Lima - OAB/MS 8290
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